18 de Janeiro de 2008
A horas demasiado obscenas para serem aqui ditas, e com um bico de pato asfixiante a proteger as vias respiratórias de possíveis microorganismos esvoaçantes, o meu colega Pedro e eu arrastámos os pés até à professora assistente:
- Vão colher a história do senhor da cama 17, que é interessante.
O senhor da cama 17 - chamemos-lhe Alexandre, nome falso que permite criar alguma empatia pela pessoa e manter simultaneamente a sua privacidade - estava num quarto isolado. Um calor avassalador atingiu-nos a cara qual onda de choque assim que abrimos a porta. Ele sorriu quando viu o nosso ar de lagosta em vias de cozedura, e falou-nos com sotaque brasileiro:
- Desculpa o calor, doutor. Mas eu gosto de ter o ar condicionado bem quentinho, que nem minha casa no Brasil.
Apresentámo-nos, perguntámos-lhe se não se importava de contar a sua história a dois estudantes de medicina, e abrimos as hostilidades: nome, idade, profissão, naturalidade, motivo de vinda ao hospital, caracterização dos sintomas, doenças anteriores, e todo esse interminável questionário a que a inexperiência nos obriga.
Enquanto eu examinava o Alexandre, o Pedro perguntou-lhe:
- Então, o senhor veio para Portugal porquê? Já conhecia aqui alguém, ou veio à aventura?
Ele hesitou. Estava nessa altura a medir-lhe a pulsação, e apercebi-me de um ligeiro aumento na sua frequência cardíaca. Depois, com um sorriso ligeiro que só atingia a cara do nariz para baixo (deixando os olhos inertes, fixos com um brilho baço de nostalgia), contou-nos:
- Eu na verdade fui para a Inglaterra primeiro, faz 3 anos. Tinha lá um amigo meu vivendo que me recebeu. Aí, um mês depois que eu cheguei lá, ele foi morto.
Senti um "clic" no cérebro. Parei de examinar os pontos herniários do abdómen e olhei para ele. Perguntei:
- Foi morto... pela polícia?
- Sim - respondeu ele -, foi a Polícia que matou ele no metro, pouco depois daquele atentado com bomba. A família depois foi indeminizada, mas passou muito mal. Aliás, ainda estão passando mal... Bom, eu depois não tinha mais com quem ficar, não pude arranjar emprego, meu visto passou de tempo e eu não tinha dinheiro para comprar bilhete de volta para o Brasil, então eu vim para Portugal.
http://news.bbc.co.uk/1/hi/uk/4713753.stm
Há coisas que não lembram ao diabo...
A história era de facto interessante. Mas não tanto pelo lado clínico.
(Já agora, a título de curiosidade, ele teve uma pericardite infecciosa aguda.)
A horas demasiado obscenas para serem aqui ditas, e com um bico de pato asfixiante a proteger as vias respiratórias de possíveis microorganismos esvoaçantes, o meu colega Pedro e eu arrastámos os pés até à professora assistente:
- Vão colher a história do senhor da cama 17, que é interessante.
O senhor da cama 17 - chamemos-lhe Alexandre, nome falso que permite criar alguma empatia pela pessoa e manter simultaneamente a sua privacidade - estava num quarto isolado. Um calor avassalador atingiu-nos a cara qual onda de choque assim que abrimos a porta. Ele sorriu quando viu o nosso ar de lagosta em vias de cozedura, e falou-nos com sotaque brasileiro:
- Desculpa o calor, doutor. Mas eu gosto de ter o ar condicionado bem quentinho, que nem minha casa no Brasil.
Apresentámo-nos, perguntámos-lhe se não se importava de contar a sua história a dois estudantes de medicina, e abrimos as hostilidades: nome, idade, profissão, naturalidade, motivo de vinda ao hospital, caracterização dos sintomas, doenças anteriores, e todo esse interminável questionário a que a inexperiência nos obriga.
Enquanto eu examinava o Alexandre, o Pedro perguntou-lhe:
- Então, o senhor veio para Portugal porquê? Já conhecia aqui alguém, ou veio à aventura?
Ele hesitou. Estava nessa altura a medir-lhe a pulsação, e apercebi-me de um ligeiro aumento na sua frequência cardíaca. Depois, com um sorriso ligeiro que só atingia a cara do nariz para baixo (deixando os olhos inertes, fixos com um brilho baço de nostalgia), contou-nos:
- Eu na verdade fui para a Inglaterra primeiro, faz 3 anos. Tinha lá um amigo meu vivendo que me recebeu. Aí, um mês depois que eu cheguei lá, ele foi morto.
Senti um "clic" no cérebro. Parei de examinar os pontos herniários do abdómen e olhei para ele. Perguntei:
- Foi morto... pela polícia?
- Sim - respondeu ele -, foi a Polícia que matou ele no metro, pouco depois daquele atentado com bomba. A família depois foi indeminizada, mas passou muito mal. Aliás, ainda estão passando mal... Bom, eu depois não tinha mais com quem ficar, não pude arranjar emprego, meu visto passou de tempo e eu não tinha dinheiro para comprar bilhete de volta para o Brasil, então eu vim para Portugal.
http://news.bbc.co.uk/1/hi/uk/4713753.stm
Há coisas que não lembram ao diabo...
A história era de facto interessante. Mas não tanto pelo lado clínico.
(Já agora, a título de curiosidade, ele teve uma pericardite infecciosa aguda.)
1 comentário:
ainda há pouco tempo mandei aqui uma boca a esse respeito...
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