terça-feira, 18 de dezembro de 2007

Uma Visita de Estudo à Laia de Ensino Primário

Gostaria de partilhar convosco um momento de desabafo que surgiu no contexto de um trabalho para uma cadeira com o bonito nome de "Curso Livre de Políticas e Gestão de Saúde Pública". Bem sei que o título é tudo menos apelativo, mas peço-vos que não sejam precipitados no julgamento do texto que se segue. Talvez se divirtam.
Aqui vai.


Visita ao Hospital da Luz - Breve Reflexão

Antes de falar sobre as minhas impressões relativas à visita ao Hospital da Luz, gostaria de deixar claro que tenho algumas reticências em relação a qualquer privatização que envolva a saúde. Não se trata tanto de uma ideologia firmemente cimentada à base de doutrina esquerdista ou de complexos de ordem ético-moral, mas mais uma revolta emocional que se apodera das minhas vísceras quando me saltam à vista as disparidades existentes no que toca à qualidade de serviços médicos prestados quando um utente tem dinheiro e outro não o tem. Poder-me-ia alongar sobre este assunto, mas tal daria pano para mangas e está longe de ser o objectivo da reflexão. Digamos apenas, para efeitos práticos, que a minha atitude a priori ao visitar o Hospital da Luz era de desdém e até alguma repulsa.
Assim sendo, vamos ao que interessa.

Saí na estação de Metro do Colégio Militar/Luz em passo acelerado, certo de que já iria chegar atrasado à visita ao Hospital da Luz. Parei junto de um vendedor de castanhas (figura algo deslocada e até ridícula tendo em conta as condições climatéricas, já que o sol brilhava com fúria naquele final de tarde e o Outono teimava em deixar-se ficar a dormir) para lhe pedir indicações. “É só seguir em frente por aí fora e vê logo à sua direita.” Bastante simples. Acho que é o mínimo exigível a um hospital – que seja fácil de encontrar.
A minha primeira impressão ao deparar-me com o edifício foi a de que me estava a dirigir mais a um centro de conspirações políticas com tecnologia de ponta, do que a um hospital. É bem capaz de ser o hábito causado pela convivência quase diária com o monstro feio, desleixado e cimentado que é o Hospital de Santa Maria, mas o aspecto cuidado e resplandecente do Hospital da Luz tinha algo de Serviços Secretos norte-americanos pentagónicos.
Descobri a entrada principal sem dificuldades, onde já aguardavam os meus colegas. O átrio era agradável, com bastante luz vinda do exterior. Tinha um aspecto sóbrio, contrastando com a claridade artificial e quase histérica da entrada do Hospital de Santa Maria. Tudo, desde os bancos de espera até aos balcões de atendimento e passando pela farda dos funcionários, tinha um aspecto impecável.
Aguardámos uns 5 minutos até chegarem os colegas que faltavam (afinal, não tinha sido eu o único atrasado) e fomos dirigidos em alegre manada até um anfiteatro. Pelo caminho, ia observando o espaço. Havia um poço de luz central enorme repleto de plantas à nossa esquerda, logo depois dos elevadores. Havia ecrãs sensíveis ao toque de um dedo onde um utente podia obter as mais diversas informações. E havia, sobretudo, ausência de movimento. Pouca gente a circular. Pouco barulho. Era como se o hospital ainda estivesse a funcionar a meio gás.
Assim que nos instalámos no anfiteatro, iniciou-se uma breve sessão sobre o funcionamento do hospital e sua integração no grupo Espírito Santo, articulando-se com programas de seguros de saúde e contas bancárias de uma forma que a mim me pareceu de uma promiscuidade um pouco obscena. Mas sendo eu um ignorante nestes assuntos, desconhecendo por completo os trâmites nos quais se desenvolvem as tramas burocráticas da saúde, talvez essa percepção tenha sido apenas uma manifestação de um hipotético Síndrome de Velho do Restelo.
Foi-nos explicado que, por motivos óbvios e que dispensavam explicação, não havia possibilidade de permitir que um grupo de 20 estudantes andasse a passear-se pelos blocos operatórios, unidades de cuidados intensivos e quartos de internamentos com aquele ar curioso e deliciado de quem visita um museu. Mas uma visita guiada virtual permitiu-nos ter uma vaga ideia do tipo de maquinaria e tecnologia em que a administração do Hospital da Luz investiu. Há falta de melhor expressão, digamos que é impressionante. Achei particularmente tocante a existência de monitores multifuncionais colocados à cabeceira de cada cama nos quartos de internamentos. Chamo-lhes “multifuncionais” porque servem os médicos e os doentes. Para o médico, esse monitor permite-lhe aceder a toda a informação relativa ao doente e actualizá-la ou modificá-la – refiro-me ao diário clínico, terapêutica, ocorrências intra-hospitalares e toda essa panóplia de dados que geralmente se acumula em dossiers com números de camas. Para o doente, esse ecrã serve como telefone e computador com acesso à internet. Foi-nos inclusivamente contada a história de um doente, advogado de profissão, que fracturou uma perna enquanto fazia ski. Ficou internado no Hospital da Luz, e o facto de ter acesso à internet fez com que os dias de internamento não se tivessem tornado em dias inúteis, pois pôde tratar dos seus assuntos à base de e-mails e telefonemas. Sem querer menosprezar ou ridicularizar o sofrimento deste doente, não posso contudo deixar de considerar que são invejáveis as condições em que se deu a sua maleita.
Terminada a apresentação, fomos levados a diversas áreas do hospital na companhia de uma senhora cuja simpatia sorridente espelhava um profundo orgulho e satisfação pelas instalações onde exercia as suas funções – que salvo erro era a zona de avaliação e investigação cardiotorácica. Verdade seja dita, que tendo eu a tendência natural de me deixar ficar para último neste tipo de visitas guiadas, pouco mais consegui ver do que as costas dos meus colegas ao longo de toda a deambulação. Para além do mais, tornou-se cansativo serem-nos mostrados todos os atributos de inquestionável qualidade que pareciam surgir a cada esquina, desde os electrocardiógrafos de última geração com as mais variadíssimas funções e respectivas variantes até às torneiras com design de primeira categoria.
Esta felicidade extrema era, aliás, característica comum dos trabalhadores com quem nos cruzámos naquele hospital. Todos tinham um olhar de excitação infantil em plena época natalícia, como que enebriados por aquele lugar. Mais do que o hospital em si, foi a sensação de estar num lugar onde todos pareciam irritantemente alegres que mais me marcou. Passou-me pela cabeça a imagem de um casal recém-casado que acabou de adquirir o seu ninho de amor sob a forma de um T2 em Telheiras e organiza um “jantar de inauguração” onde os amigos são convidados a conhecer todos os cantos à casa, com especial relevo para um ou outro pormenor que mais orgulho suscita nos anfitriões.
Talvez esteja a exagerar. Não passo de um estudante que ainda não pode imaginar o quanto deve custar estar num hospital ou num centro de saúde onde cada compressa e solução salina dextrosada a 5% tem de ser contabilizada e racionalizada. Não sei o que é ver um doente morrer à minha frente sabendo que uma porcaria de uma maquineta poderia salvar-lhe a vida. Não sei o que é sentir o conhecimento fluir do meu cérebro para se entupir na ponta dos meus dedos, paralisados pela contenção trombótica de custos.
Mas uma coisa é certa – senti-me desajustado naquele sítio, de tão brilhante e impecável que estava. Aliviou-me sair para a rua e poder voltar a pisar o chão sem ter medo de o sujar.
Novembro, 2007

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